Quando o médico disse “autismo”, o tempo virou urgência. De um lado, as dúvidas que três pediatras insistiram em ignorar. Do outro, um diagnóstico seco, sem explicações, apenas uma prescrição automática: quarenta horas semanais de terapias. Como encaixar isso na realidade? Como pagar? Com quem contar? Aquilo não esclareceu nada, trouxe o peso de saber que o caminho seria enfrentado com pouca escuta.
Meu filho Inácio nasceu em 2013. Era meu segundo filho, planejado, desejado, recebido com tudo no lugar: casa organizada, rotina ajustada, vida estável. Nos primeiros meses, tudo parecia dentro do esperado, consultas em dia, ganho de peso, sono regular. Mas os sinais chegaram cedo. E não era comparação com o irmão. Ele não sustentava a cabeça, não respondia ao nome, evitava o olhar. Chorava muito à noite, com uma agitação que eu não sabia nomear. Eu percebia que algo não estava certo. Mas, consulta após consulta, a resposta era sempre a mesma: “cada criança tem seu tempo.” Aos poucos, deixei de confiar no que via. Comecei a achar que o erro era meu.
Quando percebi que a escuta médica não mudaria, busquei alternativas. Fiz um relato em um centro de referência nacional e, em quinze dias, fomos chamados. Lá encontrei a primeira escuta técnica, mas com uma condição: exclusividade. Aceitei. Parecia a única via possível de cuidado articulado. Mas mesmo ali, as lacunas eram profundas. Inácio passou a ser atendido por uma equipe multiprofissional: médico do desenvolvimento, psicóloga, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta. Mas, mesmo com tantos nomes na agenda, um aspecto seguia ausente: o olhar para a vida concreta. Sono, alimentação, dor, desconfortos nada disso cabia nas discussões. A fragmentação não era descaso. Era o retrato de um sistema que não reconhece o cotidiano como parte do tratamento do autismo. O que não está no protocolo, não entra na conversa.
O diagnóstico de autismo mudou tudo principalmente dentro de casa. O pai de Inácio recusou a nova realidade, agarrando-se à avaliação anterior. O cuidado passou a ser assumido por mim e por minha mãe. Reorganizamos a rotina. Deixei um dos empregos, reduzi carga horária, acompanhei cada sessão, cada tentativa de avanço. Minha mãe cobria o que eu não dava conta: horários, refeições, momentos de exaustão. Entre deslocamentos, fichas, relatórios e metas, uma constatação se impôs: mais do que ajuda, era preciso uma rede e ela não existia.
A escola também estava presente nessa trajetória. Mas, como tantos outros espaços, não estava preparada. Inácio chorava todos os dias para ir e eu chorava de volta. Os especialistas diziam que a ida era essencial: para socializar, desenvolver a linguagem. Mas acontecia o oposto. Ele voltava mais agitado, mais sensível, mais exausto. Não suportava o barulho, os risos, os choros, os empurrões, os abraços espontâneos, aquilo que para outras crianças é rotina, para ele era sobrecarga. A escola, que deveria ser acolhimento, virou mais um ambiente de tensão. Em vez de ponte, recebíamos bilhetes, advertências e silêncios. E, mais uma vez, a culpa caía sobre a mãe por aquilo que o sistema não sabia (ou não queria) sustentar.
Levei Inácio à natação terapêutica, hipismo, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia. Mas o padrão se repetia: profissionais que não se comunicavam, foco em procedimentos, descuido com o essencial. Numa das clínicas, ele recebeu um plano alimentar padrão, ignorando sua constipação crônica. A recomendação: mudar a textura dos alimentos. Como se fosse só uma questão sensorial. Nenhuma escuta. Nenhuma investigação. A resposta era técnica. O cuidado, superficial.
Público ou privado, o cenário era o mesmo: o cuidado era parcelado. As equipes se diziam multiprofissionais, mas agiam sozinhas. O neurologista prescrevia sem escutar. O terapeuta aplicava métodos sem considerar a realidade da casa. A fono seguia protocolos sem investigar audição funcional. E quem conectava tudo isso era eu a mãe. Quando os resultados não apareciam, surgia a culpa: “não estimulou”, “não seguiu”, “demorou demais para buscar ajuda.”
E no meio de tudo isso, a medicação surgiu como regra. Risperidona, sertralina, melatonina, nomes que entraram na rotina com uma facilidade assustadora. E me pergunto, até hoje: será mesmo que toda criança com autismo precisa ser medicada antes de revisarmos o ambiente em que ela vive? Antes de olhar para os ruídos sensoriais, os hábitos familiares, o vínculo, o sono, a alimentação? Ou estamos medicando para silenciar o que incomoda mais os adultos do que as crianças?
A infância tem um tempo próprio e ele não espera. Cada ano sem cuidado articulado é uma janela que se fecha. Quando sinais são minimizados e condutas padronizadas são aplicadas sem contexto, não se trata de neutralidade. Trata-se de negligência. E as perdas não são apenas no desenvolvimento, são emocionais e sociais e recaem com força sobre quem mais deveria ser apoiado.
Famílias adoecem tentando suprir o que o sistema fragmentado não oferece. Conheço pais que venderam casa, romperam vínculos, esgotaram finanças tudo em busca de um cuidado para o autismo, que deveria ser básico. Contratam equipes com esperança, recebem promessas, acumulam frustrações. Falta orientação, falta responsabilidade compartilhada. O cuidado só acontece quando é inteiro. E ele só é inteiro quando a criança é vista como um todo, não como uma soma de especialistas.
Ronesca Sech de Santana
Mãe do Inácio
Enfermeira especialista em Estomaterapia e Oncologia, com trajetória consolidada na prática clínica, docência e avaliação científica. Mestranda em Tecnologias em Saúde pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, desenvolve pesquisa voltada à aplicação de termografia infravermelha na avaliação de feridas crônicas em pacientes com e sem diabetes mellitus. Integra, desde 2021, a equipe de avaliação científica das Jornadas de Estomaterapia, com atuação recorrente como avaliadora, moderadora e membro de comissões organizadoras da SOBEST. Sua experiência combina rigor técnico, escuta qualificada e capacidade de articulação entre ciência, ensino e prática assistencial. Está apta a contribuir em iniciativas voltadas à educação continuada, organização de eventos científicos, curadoria de conteúdo técnico e desenvolvimento de projetos institucionais voltados ao cuidado em estomaterapia.