Pensar em falar sobre o tema “doação de órgãos e tecidos” para quem não está familiarizado com o assunto, resulta em pensar diretamente na morte, e, sobre a morte em geral, no ocidente não temos uma boa reação quanto ao assunto por remeter a tristeza e ao sentimento de perda.
Dito isso, a doação de órgãos e tecidos, ainda, em pleno 2024, no mundo pós-pandêmico, é um tabu social, que gera muitas dúvidas e receios na sociedade. Por isso, o dia 27 de setembro de todo ano, instituído em 2007 como uma forma de incentivar a doação, é uma data importante para fazermos essa reflexão social. É o momento de reunir-se com os seus familiares, informar se você é um doador e ouvir a vontade deles também.
O mês de setembro acaba de se encerrar e a reflexão que fica para mim este ano é que seguimos debatendo os mesmos desafios, sendo o mais comum e comentado na área: a recusa familiar como o principal entrave da doação de órgãos e tecidos. Daí chamo os leitores para a reflexão. Por que quase metade das famílias no Brasil ainda recusam? Essa deveria ser a ótica da discussão e não a culpabilização em um processo que depende em maior parte da qualificação profissional.
Os países com os melhores resultados do mundo entenderam isso e investiram fortemente em educação permanente e na busca por eficiência de seus sistemas, identificando as falhas. A comoção social esteve presente nas ações, como o apoio e a parceria das mídias de comunicação de massa, mas não eram as ações principais.
Isso denota um pensamento: será que são as famílias que querem dizer não ou nós profissionais de saúde brasileiros que não temos oferecido em larga escala um atendimento qualificado, acolhedor, esclarecido e regado de autonomia que só ocorre de fato quando se fornece conhecimento atrelado a liberdade?
Essas ações de sucesso foram percebidas por estados como Paraná e Santa Catarina. Esses estados entenderam que o investimento em qualificação dos seus profissionais modificava o foco de uma busca a qualquer custo por órgão e tecido, para um acolhimento familiar qualificado, oferecendo a doação como oportunidade e não como objetivo final. Isso fez com que esses estados atingissem as melhores taxas de doação e as menores em recusa familiar do país, alcançando taxas de países europeus como a Espanha.
Logo, todo ano fazemos ações de comoção, sensibilização e conscientização social. Mas, me pergunto, quando é que nós (tomadores de decisão e formuladores de políticas) temos trabalhado energeticamente nas questões que podem modificar e qualificar esse sistema de doação e transplante no país?
Acredito que na fase que estamos hoje no Brasil, de uma profissionalização e inovação nos transplantes, com recentemente, o transplante de útero intervivos e a inauguração de uma startup para cultivar órgãos suínos(os chamados xenotransplantes), devemos conjuntamente voltar os nossos esforços para melhorar a procura de órgãos e tecidos. Então, celebrar o setembro verde divulgando a temática e olhando para as taxas com a intencionalidade de melhorar, e não de transferência de responsabilidades para a família que é quem recebe a assistência pouco qualificada.
Como já dito em uma frase clássica e clichê espanhola “Sem doação, não há o transplante”!
Referências Bibliográficas:
– Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplante (RBT). Dimensionamento dos Transplantes no Brasil e em cada Estado (2016–2023) [Internet]. Vol. 30. São Paulo; 2023. Available from: www.abto.org.br
– Gois RSS, Galdino MJQ, Pissinati PDSC, Pimentel RRDS, Carvalho MDB, Haddad MDCFL. Effectiveness of the organ donation process. ACTA Paul Enferm. 2017; 30(6): 621–627.
Rafael Rodrigo da Silva Pimentel
Enfermeiro.
Preceptor e Membro fundador da Liga Acadêmica de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (LADOTT) da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP).
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento em Enfermagem da EEUSP.
Analista de Pesquisa Sênior do Centro de Estudos, Pesquisa e Prática em APS e Redes (CEPPAR) do Hospital Israelita Albert Einstein.
Professor na graduação em Enfermagem da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE).