Crônicas de uma quinta-feira à tarde

Crônicas de uma quinta-feira

E lá se foi mais um dia de consultório, corrido e com muitas atividades a serem realizadas, muitos pacientes e muitas vidas passando por aquele espaço. Tudo estava fluindo como num dia comum, recebo mais uma ficha da recepção, penso: “ mais uma vida a passar por minhas mãos e mais uma história que irei conhecer”, mas o que eu não imaginava é o quanto essa “nova” vida tocaria a minha.

Chamei o paciente pelo nome completo, Sr J.P (nome fictício), confirmei o nome e a data de nascimento, procedimentos muito triviais na segurança do paciente. Pedi que ele adentrasse o consultório, veio andando com passos curtos e lentos, estava acompanhado pela esposa, uma senhora que sorria com os olhos. Percebi que estava bem tímido ao entrar no consultório, olhou alguns momentos para baixo, solicitei que se sentasse na maca para nos conhecermos melhor e verificar no que eu poderia ajudá-lo naquele momento.

Ele logo levantou a camisa e me mostrou seu dispositivo no abdomêm, com a mesma rapidez que levantou a camisa, também assim a abaixou, vi que estava desconfortável. Perguntei como estava e imediatamente começou a relatar uma história de uma pessoa trabalhadora comum, sem filhos, com uma vida de lutas, dificuldades e vitórias, como ele mesmo, se referia e, que foi surpreendido por um diagnóstico de um câncer no intestino, após 02 episódios de dor intensa, quase que insuportável, sendo esse secundo episódio o pior de sua vida, achou até que morreria ali mesmo, em casa.

Durante a consulta de enfermagem, ele relatou com voz baixa, e fala pausada o rumo que sua vida havia tomado desde aquele dia fatídico, no qual recebeu a informação do seu tumor no reto, em alguns momentos percebi que sua voz de tão baixa sumia, os olhos ficaram mareados, me mostrando o quanto tudo tem sido tão difícil desde então.

Depois de um bate papo para ele de 20min e para mim uma consulta de enfermagem, perguntei se poderia olhar seu estoma, afinal, ele viera para o ambulatório para reforçar algumas orientações, lembrando que um estoma é uma abertura criada cirurgicamente no abdômen que está conectada ao sistema digestivo ou urinário para permitir que as fezes ou a urina sejam desviadas para fora do corpo, no caso do Sr J.P, havia liberação de fezes. Assim que levantei a camisa dele observei um saquinho cristal envolvendo seu saco coletor, aquele saco transparente que utilizamos na cozinha, no dia a dia. Perguntei o motivo do dispositivo dele estar envolvido naquele plástico, e ele me respondeu que como sua bolsinha as vezes vazava, aquele saquinho lhe trazia a segurança de que sua roupa não fosse suja pelo efluente (fezes). Com a sua licença descolei a placa ele que estava utilizando, avaliei o recorte e  estava adequado em relação o tamanho do estoma – nessa hora a esposa disse em alto e bom tom “fui eu que cortei”, a parabenizei pelo cuidado, era um dispositivo de uma peça, placa plana, com saco coletor drenável. Vi seu estoma, ele era um estoma recém confeccionado, estava com ele há 15 dias e já mudara tanto a vida do Sr J.P, tinha pouca protusão e oval, não havia dermatite perilesão e o objetivo ali era ajudar e apoiar de alguma forma aquele paciente que se encontrava na minha frente. A esposa estava ali do lado dele, bem participativa, falou orgulhosa dos produtos que ela mesmo já providenciado para ajudar o esposo nessa jornada (creme barreira e hidrocolóide em pó), disse que ela estava ajudando ele nos cuidados com o estoma e também não concordava com aquele saquinho pendurado e com um belo sorriso nos olhos disse que apesar das dificuldades em lhe dar com estoma, estava ali do lado do Sr J.P para o que der e vier, feliz pelo fato dele estar vivo. Recordou dos momentos de angústia que acompanhou nos últimos tempos e mostrou o alívio em ter seu parceiro ao seu lado, não acreditava que mesmo com a vida saudável que seu companheiro levava (sem abusos e sem vícios) o diagnóstico avassalador invadiu a vida do casal.

Me perguntou sem jeito se ele quando ele chegou eu senti algum cheiro diferente, respondi que não, foi possível identificar o alívio na sua respiração, expliquei que ele estava com o dispositivo bem colado e que flatus (pum) é flatus (pum) no dispositivo e fora do dispositivo (ele caiu na risada) – tem cheiro normal, mostrei o carvão ativado no saco coletor que eu tinha, dei algumas dicas de alimentos a serem incluídos na dieta, como o chá de pêssego e aconselhei a evitar alguns- se ele achasse necessário queijos e cebola, ele ouvia tudo muito atento a cada palavra. Vi que depois disso ele ficou mais a vontade na sala, até brincou com a esposa e disse que talvez se livraria do saquinho.

Quando falo sobre estomias, gosto muito de lembrar que essa cirurgia é o que possibilitou o paciente de estar ali na minha frente, sem dores e vivo. Nessa consulta eu mais ouvi do que falei, pois percebi a necessidade desse casal em contar o quanto a vida estava diferente, vivenciando alguns sentimentos até então nunca experimentados. Dei algumas dicas, sobre o melhor horário para trocar o dispositivo (pela manhã), a maneira correta de higienizar e preparar a pele, sugeri uma placa convexa, para aumentar a protusão e projeção do estoma juntamente com o cinto (que o ajudaria a aposentar de vez aquele saquinho), falei algo sobre dispositivos de duas peças, período de troca, deixar aquele kit esperto de primeiros socorros no carro (placa já cortada), numa necessidade. Ele sorriu, olhou nos meus olhos e disse o quanto ficou feliz em ter podido conversar sobre seu estoma (afinal não tinha contado para quase ninguém), agradeceu por eu lembra-lo que ele foi submetido  a cirurgia da vida e me agradeceu com o tom de voz mais forte e empoderado, porém lá no fundo do meu coração quem estava agradecendo ele era eu, por me permitir estar ali acolhendo essa história e esse casal, que tem cumprido com maestria a promessa que fizeram há 30 anos atrás “Na saúde e na doença”! Me fez agradecer também a Norma Gill, Dr Rupert e todas as enfermeiras em todo mundo que prestam atendimento especializado a pessoas com estomias. Gratidão!

Karina Silva Inocentini

Karina Silva Inocentini
Bacharel em Enfermagem pela Faculdade UNIABC, Especializada em Estomaterapia pela Faculdade de Medicina do ABC, MBA em Gestão de negócios em saúde pela FGV, membro Pleno da Sobest e Proprietária Estomahelp Consultoria.

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