As feridas que apresentam atraso na cicatrização constituem um problema de saúde de magnitude global. O termo “ferida de difícil cicatrização” é utilizado para feridas de qualquer etiologia que não respondem ao padrão de tratamento baseado em evidências devido a fatores impeditivos à cicatrização, como a presença de biofilme, dificuldades anatômicas ou outros fatores subjacentes. Feridas complexas são definidas como as que apresentam fatores complicadores do processo do cuidado, como condições clínicas, doença de base, fatores psicológicos ou socioeconômicos que colocam em risco a cicatrização com a terapia padrão de forma ordenada, consistente e oportuna. Feridas crônicas são as que persistem e não cicatrizam, podendo em alguns casos serem consideradas incuráveis.
Sabe-se que diversos fatores podem contribuir para a falha na cicatrização de uma ferida, como condições sistêmicas (por exemplo, diabetes mellitus, doenças vasculares ou imunossupressão), fatores locais (como a má perfusão sanguínea e o excesso de exsudato) e psicossociais. Contudo, quando se excluem as causas patológicas para a não cicatrização, é fundamental investigar a presença de biofilme e/ou infecção na ferida. Os sinais de infecção localizada em feridas de difícil cicatrização são granulação friável e sangramento do leito, hipergranulação, pontes e bolsas epiteliais no tecido de granulação, aumento do exsudato, aparecimento de lesões satélites e atraso ou estagnação no processo de cicatrização. Quando nos referimos a infecção localizada de feridas, o tratamento é a higienização e uso de produtos antibacterianos tópicos. Nas infecções com disseminação para tecidos adjacentes ou sistêmicas, o tratamento, além de tópico, necessita, na maioria dos casos, de antimicrobiano sistêmico.
O biofilme é definido como uma rede estruturada de microrganismos, presente no leito de uma ferida, com capacidade de expressão genética diferenciada, que pode induzir à infecção. Essa estrutura apresenta uma alta resistência aos antibióticos e ao tratamento tópico com antimicrobianos. Evidências apontam que quase 80% das feridas de difícil cicatrização, crônicas ou complexas apresentam biofilme. Sabe-se que o biofilme exerce um papel crucial no atraso da cicatrização, desencadeando um processo de inflamação crônica que resulta no aumento de neutrófilos e macrófagos no leito da ferida. Esses eventos celulares prejudicam o processo cicatricial.
Além disso, evidências mostram que não há correlação entre sinais clínicos e a confirmação visual da presença de biofilme. Alguns sinais e sintomas devem ser monitorados durante a resposta ao tratamento da ferida, como atraso na cicatrização, resposta inadequada ao tratamento com antibióticos e aumento do exsudato. Contudo, a avaliação clínica por si só pode ser insuficiente. Atualmente, propõe-se uma abordagem abrangente, que envolva o uso de tecnologias para identificar feridas com infecção e presença de biofilme.
Paralelamente ao problema do atraso na cicatrização, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem destacado a resistência antimicrobiana (RAM) como uma das maiores ameaças à saúde pública global. De acordo com a OMS, o uso excessivo e inadequado de antibióticos, tanto no tratamento de infecções comuns quanto para infecção localizada em feridas, tem contribuído para a emergência de bactérias resistentes. Em feridas com infecção localizada, isso implica que tratamentos tradicionais, como o uso de antibióticos sistêmicos, frequentemente não são eficazes, resultando em infecções persistentes e complicações prolongadas. Nesse contexto, o biofilme pode tornar-se um fator determinante no atraso da cicatrização e no agravamento do quadro clínico do paciente.
A formação de biofilmes em feridas de difícil cicatrização cria um ciclo vicioso: as bactérias presentes no biofilme são protegidas contra os antibióticos, o que prolonga a infecção e mantém a inflamação crônica, impedindo que o processo de cicatrização avance de forma adequada. A resistência antimicrobiana agrava ainda mais esse problema, pois as opções terapêuticas se tornam progressivamente mais limitadas, resultando em tratamentos mais demorados e, em muitos casos, ineficazes.
Dessa forma, o enfermeiro estomaterapeuta deve estar atualizado com estratégias proativas no tratamento de feridas de difícil cicatrização, como: higienização adequada da ferida, com ações eficientes de limpeza; desbridamento de tecidos não viáveis (incluindo a granulação insalubre); gestão da umidade; remodelamento das bordas; utilização de antissépticos com surfactantes e escolha de coberturas com propriedades anti-biofilme. Essas ações devem ser realizadas de maneira consistente e repetida. Além disso, a avaliação do paciente deve ser integral, a fim de gerenciar fatores sistêmicos e locais que possam contribuir para o atraso na cicatrização e monitorar os resultados obtidos.
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Saskia Iasana Pontes Fleury
Enfermeira Estomaterapeuta
Mestre em Ciências da Saúde pela escola de enfermagem da USP
Membro do grupo de pesquisa estomaterapia da escola de enfermagem da USP
Enfermeira líder da qualidade na Clínica ConvaCare